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FLIR – 2025: O AUTOR E A FORMAÇÃO DO LEITOR


Na semana passada tivemos a realização da Feira Literária de Rondonópolis, FLIR – 2025, nas dependências da Câmara Municipal. Na oportunidade estive participando conjuntamente com professores e alunos do 5º Ano, da EMEF Alcides Pereira dos Santos, onde pudemos conferir as exposições e acompanhar o lançamento de vários livros, conversar com autores e assistir a várias palestras. Foi visível e contagiante a alegria estampada no rosto de cada criança que, pela primeira vez, adentrava um espaço de tamanha magnitude sobre produção e discussão literária. As crianças, todas na faixa etária dos dez anos, possuidoras de grande curiosidade a respeito de tudo, sempre querendo conhecer e entender, para além da pouca idade, o mundo que se desenha nas diversas páginas e telas, não se furtaram ao direito de conhecer os escritores, tirar selfies, pedir autógrafos e perguntar sobre as mais variadas questões.

Dentre as questões discutidas, estavam presentes o processo de criação e realização de um livro, a consolidação de autores e a preocupação com a formação de leitores. Nesses três aspectos, a FLIR – 2025 lançou colaborações imprescindíveis, cujos resultados já são visíveis. Para os estudantes, tal experiência vivenciada de forma tão significativa constituiu-se na aceitação e mergulho no universo literário.
De modo geral, sempre que se discute o gosto e a capacidade de leitura e interpretação do jovem brasileiro, fica nítido que se espera que a escola, sozinha, forme o leitor. A escola deveria ter, preferencialmente, os tempos e espaços privilegiados para tal função. Sim, deveria ter, mas não é o que realmente acontece, por motivos vários.

Isso me fez lembrar dos baixos resultados historicamente construídos na educação brasileira e refletir de uma forma diferente sobre o que costumeiramente se discute acerca da formação de leitores. Em 2024, o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), avaliou o desempenho de estudantes de 15 anos em leitura e revelou que o Brasil tem um desempenho abaixo da média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em todas as áreas, incluindo criatividade.
Para falar sobre leitores, inevitavelmente, há que se falar sobre escritores. Não é que o brasileiro não seja leitor, o questionamento que julgo ser fundamental é “o que o leitor está lendo e para o quê?”. Não dá mais para pensar na formação de leitor competente, apreciador de antigos cânones empoeirados no canto de uma biblioteca, levando-se em conta as estratégias e investimentos realizados até então. O que pude ver na FLIR – 2025 foi a figura do escritor preocupado em alcançar e formar o seu público leitor: autores humanos, acessíveis, ao alcance do leitor, disposto ao diálogo, sem a áurea da autoridade intelectual. De outro lado, crianças e jovens ainda interessados no universo letrado, com a curiosidade e inocência das primeiras letras. Essa empatia vende primeiro o autor, a obra vem depois.

Trago essas observações porque a figura do autor nunca foi vista com a incumbência de ajudar a formar leitores, cabendo-lhe o conforto de ser lido. Ocupando o patamar da produção, era julgado como bom ou ruim, e tendo como voz de autoridade a chamada crítica especializada. Pensava-se que caberia ao leitor escolher um bom escritor para ser um bom leitor. Os tempos são outros. Com as fronteiras da produção e publicação diluídas, surgem novos perfis de autores e leitores, ampliando-se também o campo de interesse.

Durante o século XX, a crítica literária promoveu uma reviravolta no modo como interpretamos textos. Um dos marcos desse debate foi o famoso ensaio do francês Roland Barthes, publicado em 1967, onde ele anunciava “a morte do autor”. Para ele, a vida pessoal do escritor não deveria interferir na interpretação de sua obra. O texto deveria falar por si só, livre das intenções de quem o escreveu. Essa concepção prevê leitor e autor versados no texto formal, nas regras gramaticais e nas estruturas que se acreditavam carregar os significados necessários.
Por um tempo, essa ideia encontrou eco nas salas de aula e nas páginas acadêmicas. A formação do leitor era pensada em esquemas decorativos e estudos literários que não eram compreendidos e muito menos apreciados. Muitos jovens afirmavam não gostar da literatura, tendo como exemplos os estudos engessados aos quais foram submetidos. Dizer que alguém não gostava de ler era uma forma de culpá-lo por ser um leitor com pouco entendimento interpretativo.
Atualmente, em pleno século XXI, essa ideia estruturalista não dá conta de explicar tudo que se passa na literatura contemporânea. As concepções de linguagem mudaram e ampliaram, tornando-se dialética e interacionista. A figura do autor não só continua viva, como passou a ser vista de maneiras ainda mais complexas — e fundamentais. Hoje, não lemos mais um livro apenas por sua história. Queremos saber quem o escreveu, de onde veio, o que viveu e o que representa. A identidade do autor — seu gênero, raça, classe social, território — virou parte essencial do que entendemos como experiência literária. Um romance escrito por uma mulher indígena, por exemplo, carrega em si uma potência histórica e simbólica diferente de um clássico europeu. Ambos são valiosos, mas a escuta precisa considerar de onde vem cada voz.
Além disso, vivemos uma era em que a tecnologia transforma o modo como produzimos e consumimos literatura. Nunca foi tão fácil escrever, publicar e ser lido. Plataformas digitais, redes sociais e aplicativos de leitura colocam o autor em contato direto com seu público, em tempo real. Leitores tornaram-se coautores, criadores de fanfics, remixadores de histórias. A fronteira entre quem escreve e quem lê está cada vez mais fluida. Nesse contexto, parafraseando Milton Nascimento “o artista tem que ir aonde o povo está”. E o povo está em todos os lugares.
Devemos ainda, agora, pensar em um novo protagonista que está surgindo: os algoritmos. Textos gerados por inteligência artificial estão cada vez mais sofisticados e popularizados — de poemas a romances inteiros. Isso levanta perguntas intrigantes: se uma máquina escreve um texto, quem é o autor? Estamos prontos para discutir autoria sem humanidade? Escritor que não é leitor? Leitor sem escritor?
Diante de tantas mudanças, o autor não desapareceu. Ele foi redesenhado. Como propõe Hans-Georg Gadamer, compreender um texto é dialogar com ele — e esse diálogo inclui o leitor, o contexto e, sim, a presença (ainda que transformada) de quem o escreveu. Nesse aspecto a FLIR – 2025 acertou em cheio ao dar espaço e voz ao autor rondonopolitano, privilegiar o contato físico, colocando escritor e leitor frente a frente (principalmente os estudantes).
A literatura do século XXI não é feita só de palavras. É feita de vozes. E o autor, longe de estar morto, continua falando — às vezes em primeira pessoa, às vezes em muitas. Que a FLIR continue existindo.

Senio Alves
Escritor e professor

3 thoughts on “FLIR – 2025: O AUTOR E A FORMAÇÃO DO LEITOR

  • Isaias Dias Pereira

    Que maravilha de texto meu amigo.

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  • Don José

    Grande artista Sênior Alves. Um dos maiores do Brasil.

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  • Pedro Pereira Campos

    Excelente. Uma análise ampla, cuidadosa e perfeita sobre o evento, seus reflexos e perspectivas.

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