Opinião

Uma voltinha pela Palestina

Um dia voltarei à Palestina onde o vento é maravilhosamente sagrado

Por Roberto Caminha Filho

Desde os tempos de grupo escolar, lá pelos anos em que o leite era da Aliança para o Progresso e vinha em garrafa de vidro e merenda boa era farofa de ovo, eu tinha uma ideia fixa: conhecer o deserto. Mas não era qualquer deserto, não — eu queria pisar naquele lugar em que Moisés se perdeu por quarenta anos, com ou sem GPS, e onde o mar não é só morto, é salgado até a alma. Os amigos, quando me enxergam, boiando no Mar Morto, dizem coisas como: O mar e o Morto ou: só ele não sabia que Titica nunca afunda, só boia.

O Mar Morto é aquele tipo de passeio que parece um milagre moderno: você entra e, por mais que tente, não afunda. Fica boiando, feito isopor em água de salsicha. Parece divertido — e é, até você esquecer e abrir os olhos debaixo d’água. A ardência é tão grande que você passa a entender o que é sofrer por osmose. É como passar pimenta malagueta na córnea. Não recomendo. O Mar Morto é o lugar mais baixo da terra em que pisamos.

Mas o que realmente exigiu preparo físico e mental foi o ambiente ao redor do Mar Morto: a Palestina e Israel, com seus muros altos, ruas tensas, e histórias milenares misturadas com fuzis e postos de controle a cada esquina. O brasileiro aqui achava que ia encontrar um lugar sagrado, cheio de espiritualidade e paz. E até encontrou. Só que entre uma prece e outra, vinha o pedido de documentos — feito por jovens soldados de 17 ou 18 anos, carregando metralhadoras com o cano já desgastado, de tanto uso ou de tanto Sol. Um adolescente no Brasil nessa idade está aprendendo a dirigir ou treinando pra ser youtuber. Lá, ele decide se você entra ou volta.

Depois de mostrar passaporte para um batalhão de meninos armados com seriedade e acne, percebi que precisava de uma tática de sobrevivência. Aí me lembrei do poder diplomático da camisa da Seleção Brasileira. É universal. Verde e amarela, com o nome Pelé ou “Brasil”, estampados nas costas, ela faz milagres maiores que os da Bíblia. Quando comecei a usá-la, os olhares mudaram: “Brasil? Pelé! Samba! Neymar! Muito bom!” — diziam sorrindo, alguns até tentando um passinho de dança com a metralhadora no ombro.

Mas o que mais me tocou foi a visita a Belém. Lá, no coração da Cisjordânia, está a Igreja da Natividade, um dos lugares mais antigos do cristianismo, onde temos a certeza que Jesus nasceu. É tudo muito simbólico. A cidade é cheia de lojinhas vendendo terço, cruz de oliveira, ímã de geladeira com o rosto de Cristo — um verdadeiro camelódromo sagrado. E no meio disso tudo, você desce uma escadaria de pedra, agacha o corpo (porque a porta da igreja é baixa de propósito, para ninguém entrar de peito estufado e deixar cavalos e tanques lá fora) e chega até a estrela de prata que marca o local onde teria sido a manjedoura.

Foi estranho e bonito ao mesmo tempo. Lá estava eu, com os joelhos operados no chão, olhando para uma estrela que milhares de peregrinos tocam todos os dias, tentando sentir alguma conexão. E senti, confesso. Não era uma revelação mística, mas um respeito profundo por aquela fé toda. Pensei na minha mãe, rezando novena em casa. Pensei em Jesus, nascido num estábulo e hoje disputado por igrejas, teólogos, pastores, partidos e até torcidas organizadas. O silêncio daquele lugar dizia mais do que discursos. E como bom brasileiro, tirei uma selfie — discretamente, claro, sem flash.

O guia local, um palestino de fala mansa, ainda explicou que o teto da igreja é mantido por um acordo entre três religiões, e que se alguém troca uma lâmpada sem combinar com os outros, dá guerra. Imagine isso no Brasil: três igrejas dividindo o mesmo teto? A gente mal consegue dividir o wi-fi de casa!

Na saída da manjedoura, sem que ninguém falasse e só curtisse aquele momento com o Filho, um rapaz de vinte e um anos, mais ou menos, estava plantado e dizendo: Jesus não nasceu aqui e ninguém sabe onde. Aí foi demais para esse embaixador da paz. Falei para o jovem: Eu te perguntei alguma coisa sobre o local de nascimento de Jesus? Eu acabei de vê-lo e conversei com Ele. O garoto deve ter pensado: Mais um brasileiro maluco!

Claro que nem tudo é contemplação. Belém também tem checkpoint, tensão, e jovens soldados com olhares duros. Mas tem criança brincando de pipa, tem padaria vendendo pão quente na calçada, os doces mais doces do mundo, tem grafite com pombas da paz voando em muros cheios de buracos. A vida insiste, mesmo quando tudo parece parado.

E eu ali, no meio, tentando entender. Brasileiro é bicho estranho mesmo. A gente entra em zona de conflito pensando que é festa. Mas também, quem sobrevive ao trânsito de São Paulo, ao preço do quilo da picanha e ao VAR no futebol, acha que pode dar pitaco em geopolítica mundial.

Minha voltinha pela Palestina foi isso: um passeio entre o sagrado e o surreal. Aprendi que não se nada no Mar Morto — flutua-se. Que o deserto (bari) é mais bonito do que o Google mostra. Que o povo, mesmo cansado, continua tentando. E que a camisa do Brasil, pasmem, ainda é o melhor colete à prova de bala moral que existe. Ela não resolve conflito nenhum, mas abre sorriso em todo checkpoint.

Voltei pra casa com um pote de lama e sal, velas de cera de abelhas, benzidas pelo Papa, doze mudas de oliveiras e uma certeza: quando tudo falhar, samba e futebol ainda são as armas mais potentes que o Brasil exporta. Pena que não dão conta de resolver o Oriente Médio. Mas quem sabe um dia? Um dia voltarei à Palestina onde o vento é maravilhosamente sagrado.

 

Roberto Caminha Filho, economista, quer voltar àquela terra e exige que que qualquer brasileiro não se meta naquela briga. O por quê? Depois de três mil anos, só eles entendem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *