Nacional

As falanges do ódio digital

Jair Bolsonaro utilizou a tática da mentira ao longo de sua campanha eleitoral. Vitorioso nas urnas, continuou a valer-se da desinformação como estratégia de governo. Agora, transformou as fake news em política de Estado. Essa é uma das bases para a existência do que hoje se denomina neopopu-lismo, hegemônico no Brasil e em alguns outros países, a exemplo dos EUA, de Donald Trump, e da Hungria, de Viktor Orbán. O neopopulismo se move entre a direita e a extrema-direita, mas o que está em jogo é muito mais que uma ideologia, como ensina o filósofo francês Pierre-André Taguieff. Trata-se, sobretudo, de uma forma de organização do poder. Do velho populismo herdou-se o discurso sempre passional e apelativo daquele que se faz líder (delineado pelo fundador da sociologia Max Weber), mas há hoje uma diferença vital na disseminação de tal discurso: criou-se um novo espaço político, invisível e intocável feito o ar, que são as redes sociais.

 

É nesse território sem fronteiras que o neopopulismo anda em círculos e promove o alvoroço e um pandemônio de ataques virtuais. Para haver populismo é preciso, obviamente, que em primeiro lugar exista uma parcela da população a entronizar um governante autoritário. Bolsonaro ganhou de graça essa posição, advinda do contingente de brasileiros desiludidos com o lulopetismo. Tanto esses individuos, quanto aqueles que lhe fazem oposição, têm de ser, no entanto, diuturnamente colocados em conflito. Mais uma vez, caímos no universo obscuro das redes sociais.

O seu uso indevido, como faz o clã Bolsonaro ao criar no terceiro andar do Palácio do Planalto o “gabinete do ódio”, com a finalidade de disparar mensagens falsas e ataques a pessoas e Poderes da República, passa a ser um fenômeno excessivamente preocupante. Estudo recente feito com empresários e políticos nos EUA pelo Pew Research Center aponta que cerca de 50% dos entrevistados consideram que as redes sociais, se usadas na instrumentalização da população, debilitarão as bases da democracia. E esse é o governo Bolsonaro, sustentado por suas falanges da mentira e do ódio digital, lembrando-se sempre que a mentira é imprescindível para que a própria população, desorientada, realimente os conflitos, dando a chance para que o “grande líder salvador” surja como mediador das situações que, na verdade, tanto ele, quanto seus colaboradores diretos, provocaram. Raramente vê-se uma foto de Orbán ou de Trump sem que eles estejam com um celular em mãos. Não é outra a imagem que nos fica na mente em relação a Bolsonaro e seus filhos — o capitão chega à sofisticação de ter um celular direcionado para o filho Carlos e outro exclusivo para o filho Eduardo. O neopopulismo dos Bolsonaro, que já está tomando ares de caudilho digital, tem um apetite descomunal e monstruoso.

Por meio de uma complexa estrutura de perfis falsos, robôs, sites e blogs mantidos com recursos públicos e com milionárias contribuições de empresários suspeitos também de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal, os Bolsonaros comandam uma rede com mais de 50 milhões de indivíduos, a maioria deles usados como milicianos digitais, para promover linchamentos virtuais, manipulação de debates, cyberbulyings, destruição de biografias e ataques rasteiros que não poupam nem mesmo os presidentes da Câmara, do Senado e STF.

Rede de intrigas

ISTOÉ mergulhou nas investigações da Comissão Parlamentar Mista de Investigação (CPMI) das Fake News, integrada por membros da Câmara e do Senado, e apurou que esse poderoso esquema das falanges do ódio virtual é comandado por quatro cabeças, tendo o presidente Jair Bolsonaro à frente, com a colaboração direta de seus filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro,
o Carluxo, além do astrólogo Olavo de Carvalho. A CPMI concluiu que os quatro cavaleiros medievais comandam pelo menos setenta pessoas que já estão sendo investigadas pelos parlamentares das três frentes de averiguações que compõem a comissão. Um total de 153 pessoas foram convocadas a depor, mas agora os parlamentares se debruçarão sobre os mais ligados ao clã Bolsonaro. ISTOÉ teve acesso à maior parte da lista com o nome desses bolsonaristas, composta por pelo menos quatorze deputados federais — todos do PSL, antigo partido do presidente, mas que ainda abriga o deputado Eduardo e seus fiéis seguidores da extrema-direita como Daniel Silveira, Filipe Barros, Bia Kicis e Carlos Jordy. Todos esses deputados, que já estão sendo investigados pela comissão, deverão ser ouvidos. Além de Carluxo, Eduardo e Olavo serão chamados a depor na CPMI, mas ainda não há uma data marcada para os interrogatórios. Olavo, consultado, declarou que não deixará a Virgínia (EUA), onde mora, para prestar depoimento, mas a comissão pretende fazer um requerimento por via judicial, obrigando-o a comparecer à Câmara. O presidente Jair Bolsonaro, por prerrogativas do cargo, não deverá depor. O deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), coordenador da CPMI, diz, no entanto, que ele poderá ser responsabilizado por comandar a
rede de intrigas. “Talvez não possamos puni-lo, mas certamente poderemos desmascará-lo”, disse Frota, que, depois de fiel aliado dos Bolsonaros, transformou-se em um de seus adversários.

Os bolsonaristas ainda não foram convocados porque diversos deputados ligados ao PSL de Eduardo compunham a CPMI, como é o caso de Carlos Jordy (RJ), Carol De Toni (SC), Filipe Barros (PR) e Carla Zambelli (SP). Mas, com a retomada da liderança do PSL por parte da deputada Joice Hasselmann (SP), eles serão substituídos por parlamentares que romperam com o presidente: Junior Bozzella (SP), Nereu Crispim (RS), Delegado Waldir (GO) e Heitor Freire (CE). Com essa composição, os bolsonaristas deverão sentar no banco dos acusados.

A CPMI comprovou que o perfil Bolsofeios era comandado pelo chefe de gabinete do deputado Eduardo

De todos os suspeitos de integrar a rede de milicianos digitais, o deputado Eduardo é o mais encrencado. A CPMI comprovou, por meio da quebra do sigilo das contas das redes sociais usadas por seus assessores, que o perfil Bolsofeios, com destaque no Twitter e com o qual até o presidente Bolsonaro interage, era comandado por seu chefe de gabinete, Eduardo Guimarães, o Dudu, que recebe salário mensal de R$ 15,6 mil, pago pelo povo. Ele comandava essa conta por meio de seu celular privado, vinculada ao e-mail funcional na Câmara, utilizando-a para ataques a adversários de Bolsonaro no horário de trabalho. Portanto, com o uso de recursos públicos. Em outubro, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) já havia dito à ISTOÉ que o Bolsofeios, Bolsonero e Snapnaro eram perfis fakes controlados por Eduardo, mas só agora, com a quebra dos sigilos, é que a CPMI pode ter os documentos que demonstram a denúncia feita pela atual líder do PSL na Câmara. Segundo Frota, Dudu Guimarães usava o mesmo telefone e conta de e-mail da Bolsofeios para reservar passagens, hotéis e alugar carros para o deputado Eduardo. “Está claro que o filho do presidente valia-se de recursos públicos para liderar os linchamentos virtuais”, diz o coordenador da CPMI. Mais: Eduardo faz interface com um grupo de outros treze deputados do PSL que o obedecem cegamente e não escondem o compartilhamento das ideias de extrema-direita. Alguns desses deputados, como Daniel Silveira, são muito influenciados também por Olavo de Carvalho. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) é outra fiel seguidora dos Bolsonaros. Ela é ligada ao Movimento Vem Pra Rua, que ajudou Jair na campanha, e agora está usando a estrutura da organização para convocar os milicianos para o ato do domingo 15 contra o Congresso e o STF. O presidente da CPMI, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), descobriu, com base na quebra de sigilo da conta do Twitter identificada como Snapnaro, que o perfil foi acessado por 45 gabinetes do Senado no ano passado, antes da denúncia de Joice à ISTOÉ. Depois que a deputada revelou a conta fake, ela foi desabilitada, mas o senador quer que a Polícia Legislativa identifique quais gabinetes usaram esse perfil para disseminar mentiras.

Empresários financiam ataques

Esses deputados são seguidos por milhares de integrantes da milícia digital dos Bolsonaros, publicando posts com ataques a jornalistas, parlamentares ligados ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e senadores alinhados a Davi Alcolumbre, presidente do Senado, além de ministros do STF, como Dias Toffoli e Gilmar Mendes. O inquérito do STF aberto no ano passado para investigar as fake news descobriu que empresários ligados a Bolsonaro gastam até R$ 5 milhões por mês para financiar publicações no Facebook e no Twitter para agredir a Corte, além de investir os recursos na convocação dos atos marcados contra o Congresso e o Judiciário. As ofensas são patrocinadas por empresários dos setores do comércio e serviços.

No inquérito sigiloso supervisionado pelo ministro Alexandre de Moraes, esses empresários são suspeitos ainda de evasão de divisas, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal. O STF deve concluir a investigação até maio, enviando-a ao MPF. Carluxo deverá ser chamado a depor nessa apuração como um dos responsáveis por articular o “gabinete do ódio”, montando no terceiro andar do Palácio do Planalto. É tão nítido que ele coordena essa facção que no período em que seu pai foi para os EUA, Carluxo deu expediente diário nesse gabinete para orientar os ataques feitos rotineiramente. Os políticos atacados pelo grupo palaciano são retratados nos posts como inimigos do governo que desejam implantar o parlamentarismo branco no País e seriam responsáveis pelo Congresso não aprovar medidas que garantam a governabilidade. O que é mentira, pois, não fossem Maia e Alcolumbre, a Reforma da Previdência não teria sido aprovada. Os parlamentares bolsonaristas se valem da penetração de entidades que defendem teses da direita, como o Movimento Brasil Conservador (MBC), Ação Política Conservadora (CPAC), Movimento Acorda Brasil e Movimento Avança Brasil, entre outros. Um desses grupos edita o jornal virtual “A Critica Nacional”, pertencente ao empresário Otávio Fakhoury, de São Paulo, ligado a Eduardo e à deputada Bia Kicis (PSL-DF). Esse veículo digital é usado para atacar adversários dos Bolsonaros e disseminar teses da direita tão apreciadas pelo presidente. Fakhoury tem como sócio o “professor” Paulo Enéas, outro conhecido integrante da direita e que usa seus perfis na internet para difundir suas teses, a partir dos ensinamentos de Olavo de Carvalho em seus cursos online.

Os parlamentares são seguidos por deputados estaduais, como Ana Maria Campagnovo (PSL-SC), mas o principal núcleo desses colaboradores nos estados está enraizado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Um dos deputados mais ativos na facção da Alesp é Gil Diniz (PSL), o Carteiro Reaça, como é conhecido. Ele já foi assessor de Eduardo na Câmara e lá promoveu esquemas de “rachadinha” no gabinete do filho do presidente, situação que ele replicou na Alesp. Um de seus ex-assessores denunciou ao MP que era obrigado a dividir seu salário com Diniz, que, segundo Frota, “é o Queiroz de São Paulo”. Além dele, outro deputado ativo no grupo de Eduardo é Douglas Garcia (PSL), que tem como braço direito Edson Salomão, seu chefe de gabinete. Salomão é homem de confiança de Eduardo em São Paulo e um dos representantes da extrema-direita bolsonarista. Todos eles estão interligados a outros grupos de direita, como o Left Dex.

Difamação de jornalistas

Não menos importante é a facção liderada pelo blogueiro Allan dos Santos, o Allan Terça Livre, que tem um canal no YouTube, páginas no Facebook e contas no Twitter. Ele começou apoiando Bolsonaro na campanha quando ainda mantinha estúdios em uma humilde garagem em Porto Alegre. Mas, depois que o capitão elegeu-se presidente, Terça Livre foi levado para Brasília e hoje mora em uma mansão no Lago Sul, sustentada com verbas da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), dirigida por seu amigo Fábio Wajngarten. Allan é convidado a participar de todos os eventos do governo no Brasil e no exterior, como a visita que Bolsonaro fez aos EUA na semana passada. O blogueiro registra todos os atos do presidente e aproveita suas redes para destruir pessoas escolhidas por Bolsonaro como inimigas, sobretudo jornalistas, seu alvo predileto. Conta com a retaguarda do Jornal da Cidade Online (RS), que reverbera seus ataques e destila o ódio da falange digital do clã Bolsonaro. No ano passado, segundo a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a mídia profissional sofreu 11 mil ataques nas redes sociais — sete por minuto. A informação faz parte do relatório anual sobre violações à liberdade de expressão.

O inquérito do STF descobriu que empresários ligados a Bolsonaro gastam R$ 5 milhões
por mês para atacar ministros e suas famílias

Todas as operações dessas facções da milícia digital bolsonarista estão agora na alça de mira dos integrantes da CPMI das Fake News e é possível que muitos sejam punidos. A coordenação da comissão espera que o MPF, a PF, a OAB e outros órgãos de defesa do Estado de Direito possam usar os documentos que estão sendo produzidos para a responsabilização dos arquitetos dessa espantosa teia de intrigas montada a partir do Palácio do Planalto. Está claro que o capitão reformado pretende se perpetuar no poder com a sustentação dessa rede cibernética que, por mais paradoxal que pareça, é sustentada por ideias medievais e muito mal tem feito à democracia brasileira. Afinal, nos últimos dias, essa estrutura perniciosa tem sido usada para mobilizar os fiéis seguidores a participarem do ato antidemocrático em que se pedirá o fechamento do Congresso e do STF. O mais grave é que a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou na conta oficial do governo no Twitter uma declaração de Bolsonaro destacando a “legitimidade das manifestações populares”. O presidente convidou para o ato por sua rede de WhatsApp, configurando uma infração ao artigo 85 da Constituição, que regula crimes de responsabilidade. Por cometer essa transgressão constitucional, Bolsonaro ficará suscetível ao impeachment. Mas essa é outra batalha que será travada no Congresso.

>> @allantercalivre, como se identifica no YouTube e no Twitter, faz transmissões diárias de todos os eventos do presidente, no Brasil e no exterior, com despesas e cachês pagos pelo governo. Sua predileção é atacar detratores de Bolsonaro, além de promover fake news e cyberbulyings

>> Opera em parceria com o “Jornal da Cidade Online” (RS), especializado em ataques contra jornalistas

Fonte: Germano Oliveira e Antonio Carlos Prado

 

 

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