Opinião

O cinismo do ‘cidadão de bem’

O discurso religioso apropria-se de pautas políticas para trazer para o campo social esta ânsia milenar de controlar o corpo do outro

Foto: Flávio Ilha/Sul21

Investimentos no setor da saúde, propostas de plano econômico, estratégias para a segurança pública, projetos para privatizações ou estatizações, gestão do número de ministérios, planejamento de relações internacionais… Por mais que todas estas sejam questões essenciais de serem mantidas no horizonte da política de um país, as atuais eleições têm mostrado claramente o quanto, no fim das contas, o que realmente parece fazer diferença no voto do eleitor são as pautas de costumes.

Já desde 2018 estamos vendo o quanto faz parte do projeto da extrema-direita a redução de todas as pautas essenciais – saúde, segurança e economia – a questões que teriam a ver com valores morais. Não se discute por uma capilarização ainda maior do SUS às cidades do interior, mas condena-se o aborto como uma transgressão divina. Não se questiona por que tantas pessoas foram morar nas ruas, mas busca-se armar o “cidadão de bem” para lidar com um possível assalto. Não se levam a sério os movimentos econômicos mundiais, mas corta-se a verba das farmácias populares e condenam-se brasileiros pobres à morte por falta de medicação. 

Ao trazer toda a discussão intelectual para o campo dos costumes, passa-se a impressão de que estes são temas simples, o que oferece à população, inclusive aquela mais desamparada do ponto vista econômico e social, uma falsa sensação de protagonismo no cenário político amplo. Isso talvez ajude a explicar o porquê da aderência de pessoas de baixa renda ao discurso bolsonarista.

É mais fácil entender a questão do aborto, por exemplo, através de um viés religioso que coloca em cena a ideia de “sacralidade da vida” do que pensar que este tema, na verdade, tem relação prática com a pasta da saúde. Afinal, quando o aborto não é legalizado, resta às meninas pobres apenas recorrer a métodos inseguros de interrupção da gravidez, o que, não poucas vezes, resulta em demanda urgente aos serviços de saúde. Houvesse uma política de aborto que levasse em conta a dignidade, e não o controle sobre o corpo do outro, tantas e tantas mulheres não teriam morrido por práticas abortivas clandestinas. Entretanto, o que vemos é a planificação de toda esta complexidade à máxima tão facilmente difundida de que “toda a vida é sagrada”. 

Ou seja, o discurso religioso apropria-se de pautas políticas para, ao fim e ao cabo, trazer para o campo social esta ânsia milenar de controlar e domesticar o corpo do outro – este “outro”, claro, em geral, é uma mulher. 

Repare o leitor que não estou discordando do quanto abortar ou não seja uma decisão de cunho íntimo e que pode, sim, levar em conta aspectos religiosos da confissão particular. O que estou sublinhando é o quanto a lei tem menos a ver com garantir a segurança do cidadão e mais com o que o meu semelhante pode ou não fazer com o seu próprio corpo. Falso paradoxo típico dos discursos extremistas: ao mesmo tempo em que se defende a liberdade, este mesmo valor é suprimido quando se trata de o outro poder fazer escolhas com as quais não estou de acordo. 

O exemplo do aborto é apenas um entre tantos, mas ele é bastante ilustrativo do quanto perdemos muito do nosso capital reflexivo quando colocamos no centro do debate político não aquele que mais necessita do Estado – o pobre -, mas sim aquele que desde sempre teve o governo como um garantidor dos seus privilégios: o atualmente chamado “cidadão de bem”. 

Personagem-tipo de todo este incremento moralista dos últimos anos, o “cidadão de bem” é aquele que encarna e reproduz à luz do dia o cinismo que nos constitui enquanto sociedade desde os avanços mais temerários da lógica neoliberal. O “cidadão de bem” sabe que os assuntos são mais complicados, mas para garantir que o seu lugar de privilégio seja mantido, traduz esta complexidade toda em um linguajar que lhe assegura uma mínima sensação de superioridade moral. Ou não estamos vendo aqui e ali pelas janelas cartazes com a frase “Supremo mesmo é o povo?”, máxima ignorante que parece trazer aos flácidos cidadãos de bem a suposta garantia de uma potência de cuja perda se ressentem há algum tempo, pelo menos desde que os governos de esquerda começaram a tratar os menos favorecidos como dignos de respeito e representação?

sagrado, o bem, o bom, a liberdade… todos estes são termos facilmente manipuláveis, tendo em vista o quão vazios de significados se apresentam a priori: afinal, como definir o que é bom para o povo? Ou o que é ser livre? Ou mesmo o que significa, do ponto de vista da política concreta, dizer que a a vida é sagrada?

Quando estas palavras todas têm os seus significados capturados por um discurso moralista que apenas mantém as coisas como estão, as políticas públicas acabam se tornando prescrições que transformam as pautas democráticas em meras divagações intelectuais. No fundo, entretanto, encontramos o simples e corriqueiro anseio de legislar sobre o outro para reduzi-lo à sua mera utilidade como jogador secundário de uma partida em que sempre apenas um lado sai vencedor.

Infelizmente, mesmo que logo mais nós tenhamos êxito em reestabelecer um clima democrático no país, ainda assim teremos que lidar pelas próximas décadas – na melhor das hipóteses – com todos estes familiares, amigos e vizinhos que padecem do pecado da coerência: estes conhecidos que, ao serem vistos hoje em dia carregando bandeiras de Brasil e fazendo sinal de arma de fogo com a mão, só nos fazem pensar o quanto todo este ódio e ressentido sempre havia estado ali, dentro deles, apenas ainda não havia encontrado o terreno fértil para vir danar o solo do pensamento político. 

Estes patriotas que, ironicamente, querem destruir o próprio país. Estes “imbrocháveis” que não se importam de despertar o tesão dos amigos enviando fotos de meninas nuas nos grupos de WhatsApp, mas que não suportam a mínima possibilidade de uma mulher ter direito a fazer o que quiser com seu próprio corpo.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.



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