Opinião

Sete de Setembro: independência, anticonstitucionalismo e bolsonarismo

O dia 7 de setembro não é uma grande data se comparada aos documentos e atos que geraram independência de diversos países. Os norte-americanos, por exemplo, produziram um documento para a sua independência com duas grandes contribuições históricas: a ideia de “we, the people”, ou seja, uma transferência do poder para o povo e uma segunda ideia, também muito bem expressa naquele documento, de que todos os indivíduos foram criados iguais e com direitos. Essas duas ideias são relembradas no dia 4 de julho. No caso dos franceses, o 14 de julho também expressa um conjunto de ideias fundamentais ligadas à conquista da prisão onde os presos políticos do antigo regime eram detidos.

A Queda da Bastilha é associada ao fim do governo monárquico e à Declaração de Direitos do Homem. É isso que os franceses comemoram. Saindo dos casos do Norte, vale a pena lembrar do caso do padre revolucionário no México, Miguel Hidalgo que liderou uma verdadeira rebelião popular e camponesa contra o domínio espanhol que se iniciou em 16 de setembro, dia da independência do México. Assim, nas diversas tradições, os dias de independência representam o início de um projeto de nação calcado na ideia de igualdade e poder popular

O 7 de setembro é uma data que deveria ser comemorada pela monarquia portuguesa e não pelo povo brasileiro. Explico. Não há, na declaração de independência brasileira, nenhum elemento libertador ou programático, qualquer projeto de futuro que pudesse servir de orientador na formação da nacionalidade. Há, sim, uma explicação sobre os interesses do monarca em não deixar que um certo constitucionalismo português em ascensão limitasse as prerrogativas da família dos Bragança, tal como lhe disse José Bonifácio em carta lida às margens do Ipiranga, Dom Pedro tinha duas opções: voltar a Lisboa para ser escravo (sic) das cortes ou se proclamar imperador do Brasil (vide Laurentino Gomes: 1822). A opção de Dom Pedro, como se sabe, foi se proclamar imperador do Brasil, tornando a nossa independência um ato anticonstitucionalista e de afirmação de um poder unipessoal. Jair Bolsonaro, é claro, se identifica profundamente com o Grito do Ipiranga

O dia 7 de setembro de 1822 foi o primeiro ato de anticonstitucionalismo da história do Brasil, mas não foi o último. A Independência do Brasil marca uma forma de cima para baixo de independência proposta por elites que morriam de medo dos seus escravos e estavam dispostas a qualquer compromisso para evitar a abolição. Os compromissos vieram logo a seguir: uma Constituição que fornecia ao imperador a posição de poder moderador e que rompia com os primeiros elementos institucionais de equilíbrio entre os poderes que surgiam nos Estados Unidos através da decisão da suprema corte conhecida como Marbury versus Madison

Mas, o 7 de setembro não é o único ato que explica por que o Brasil tem um presidente que convoca manifestações contra o Supremo Tribunal Federal para o Dia da Independência. A patética rebelião militar conhecida como Proclamação da República trouxe os militares para o centro da política, posição que eles mantêm desde a primeira Constituição republicana, a de 1891. Os militares se consideram uma corporação que por vezes compete com o judiciário pelo papel de poder moderador, por vezes se coloca acima de todas as forças políticas como a única que saberia quais são os verdadeiros interesses do país. Foi assim entre 1964 e 1985 e, ao que parece, voltou a ser assim desde o patético tuíte do general Villas Boas. Jair Bolsonaro é um resultado dessas duas tradições, da anticonstitucional e da militar. De um lado, ele expressa a concepção do antigo regime de instituições políticas, pré Revolução Francesa, quando ele afirma “eu sou a Constituição” ou quando ele fala em “meu exército”. Nessa concepção, a democracia, ou o exercício da política pelo governante, está hierarquicamente acima da estrutura de divisão de poderes. Bolsonaro entende a política assim Daí sua revolta contra os ministros do Supremo Tribunal Federal que se filiam à tradição anglo-saxã de revisão constitucional. Mas, temos uma segunda questão que desde o início de abril tem chamado a atenção dos analistas: o papel das Forças Armadas e a exigência presidencial de fidelidade absoluta. Essa demanda é não apenas problemática, mas torna-se perigosíssima para um presidente que insiste em questionar a hierarquia das forças desde os seus dias de capitão rebelde nos anos 80. Daí Bolsonaro recorrer a uma outra corporação, ainda mais perigosa, porque detém capacidade de coerção e é pouco afeita à disciplina: as polícias militares

Este 7 de setembro será marcado por diversos componentes: a mistura de um anticonstitucionalismo que tem caracterizado todos os momentos de desafio à democracia no Brasil com um militarismo que se encontra na berlinda, depois do papel lamentável desempenhado por militares no Ministério da Saúde. Essa situação acaba transferindo prerrogativas de ameaça à ordem democrática para as polícias militares, não raro acostumadas a exercitar violência contra a população pobre das periferias. Não há nada a comemorar no que diz respeito a essa aliança patética que os brasileiros irão assistir neste 7 de setembro. Essa aliança é apenas uma expressão de um caminho não moderno, não republicano e antidemocrático com o qual o Brasil flerta de tempos em tempos e que Jair Bolsonaro representa tão bem. A novidade é que o presidente se isola cada vez mais dentro e fora das instituições

Na última semana, vimos algumas importantes manifestações contra essa aliança, inclusive com a positiva – ainda que tardia – adesão das principais associações representativas do capital financeiro e de setores do agronegócio. Seguindo nessa toada, o 7 de setembro pode servir para se tornar um momento da articulação da reação contra Bolsonaro e suas alianças perigosas para democracia. Se não houver forças apontando por esse caminho, corre-se o risco, de fato, de ter novamente a da independência reafirmando o anticonstitucionalismo e o poder unipessoal

Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG, coordenador do INCT – Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e autor de diversos livros, entre eles Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política, Pêndulo da Democracia e Participatory Institutions in Democratic Brazil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *