Do leitor

Sonho de consumo de uma criança

Por Hermélio Silva

Tinha realizado o sonho de andar de bicicleta, após muitas quedas e escoriações. Minha mãe passava um líquido milagroso, que ardia muito, mas logo tudo estava sarado ou curado, não sabia ao certo qual era a palavra correta para a cicatrização. A montaria mecânica era do vizinho, que manobrava com muita maestria. Eu ficava olhando e querendo a oportunidade de aprender andar em duas rodas, mas só podia usar quando o dono cansado oferecia a chance.
As ladeiras daquela cidadezinha ainda devem ter algum registro dos meus tombos, quando em debelada correria saía a tomar conta das ruas. Havia freios, mas não havia perícia para seu uso devido. O tempo me ensinou a desentortar o guidão, regular os freios, recolocar a corrente na catraca e na coroa e lavar as mãos com gasolina para tirar a graxa. Só não me dava uma bicicleta só minha, que era o sonho atual.
Já tivera outros sonhos parecidos. Um deles foi realizado quando tomei uma tubaína de seiscentos mililitros, sozinho. Estufou a barriga, mas sonho realizado, com muita vontade, curtindo as borbulhas e esperando o arroto para provar que era de qualidade aquele refrigerante tão desejado, que tomava num pequeno copo americano, cedido pelos meus pais, mas sempre único e quase cheio, no limite daquela risca do vidro, pois a garrafa deveria atender todos do seio da família. Ficava um gostinho de quero mais. Nem gosto de contar que juntei as moedas por muito tempo até o montante dar para comprar tão sonhado objeto de desejo. Quão feliz essa atitude me deixou.
A bicicleta não vinha. Juntava moedas e não tendo noção do valor do veículo desistia quando fazia a contagem do montante juntado e a distância para a obtenção do sonho. Daí para comprar picolés, pirulitos e outros pequenos sonhos era um pulo. Quando esses menores desejos passavam e via os amigos a pedalar pelo meu território recomeçava a juntar o meu patrimônio. Outras contagens, novas desistências, pequenas felicidades e nada da concretização do desejo maior.
Já estava me consolando quando ocorreu a ideia genial. Meu padrinho em visita prometeu um bezerro de presente, o que era comum no nosso tempo de garoto e eu sugeri trocar por uma bicicleta. Tiro e queda. Ganhei o tão sonhado objeto de consumo. Uma Monareta linda, verde palmeiras, feita para mim, só podia ser. Paralamas dourados, cobre-corrente cromado, pedais coberto de borracha preta, capa de selim com o escudo do meu time de futebol, que combinava com a cor do meu presente, marcas em dégradé no cano do banco, garupa e o detalhe dos fitilhos coloridos saindo das luvas do guidão. Do jeito que sonhava. Como ela chegou num final de tarde não deu tempo de curtir o suficiente naquele dia, mas guardei no meu quarto, próximo a minha cama e levantei várias vezes para ver e tocar, nalgumas delas até sentei no selim, imaginando pedaladas no bairro e exibindo aos amigos, mesmo estando parada e com o pé de descanso acionado para que não caísse e sofresse alguns arranhões, como aqueles que me acometeram no passado. Ficava a pedalar no sentido anti-horário e sentindo aquela sensação indescritível, ouvindo o barulho da catraca deslizando, quando a trava liberava a rotação sem tracionar. Não consigo externar palavras para descrever tamanho benfazejo.
Cedo estava sentado à mesa do café esperando minha mandar comprar o pão. Ela não mandou. Fiquei triste, porque era a oportunidade que queria para sair a pedalar. Tomei o desjejum com a família e quando fui incumbido de ir ao bolicho para comprar farinha de mandioca andei nas asas da imaginação no meu cavalo alado. Via que meus amigos me viam. Eu fingia que não via eles vendo e empinava o nariz, pedalando com força com um olhar à frente como se estivesse desbravando barreiras, vencendo etapas. Cheguei ao intento e fui comprar o produto. Estava tão inebriado que ao chegar a minha casa foi perguntado pela minha mãe onde estava a minha condução. Só ali percebi que havia esquecido meu maior patrimônio na venda e tinha feito um teleporte sem saber. Voltei ainda mais rápido. De longe vi aquele monumento verde a me convidar para aventuras inenarráveis e conquistar o mundo.

 

Hermélio Silva – Formado em Marketing, escritor  e

Membro fundador da Academia Rondonopolitana de Letras – ARL,

cadeira nº 06. 

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